Eu era criança quando alguém da minha família me chamava de Tanajura porque eu tinha uma bunda muito grande pro meu tamanho. Eu tinha mesmo, mas eu nunca tinha reparado. Também me disseram que quando eu crescesse seria uma mulata linda. Talvez eu fosse, mas eu não sabia o que era. Quando procurei na internet dizia que era a mula derivada do cruzamento de uma jumenta com cavalo.
Eu não entendia o que fazia toda essa gente olhar pra mim e pensar em bicho, mas eu não gostei. Eu não queria que ninguém me olhasse. Nem da minha família, nem ninguém. Nem pra minha bunda de tanajura, nem o corpo de mula e nem pra mim de forma nenhuma. Não fala comigo, não olha pra mim.
No ponto de ônibus perto da minha casa tinha um peixeiro que me encarava como um pedaço de carne todas as vezes que eu ia pro ballet. Depois que eu entendi o por quê, não me lembro de uma vez que andei na rua sem medo. Não sentei mais na janela do ônibus, não andei mais no canto da calçada, não dou informação pra homem nenhum, se me olhar eu xingo, se buzinar eu grito. Não fala comigo, não olha pra mim. Se me assaltar eu entrego tudo e até ajudo. Só não fala comigo. Não olha pra mim. Se acontecer alguma coisa comigo ainda vão perguntar o que eu fiz.
Pensei se existia uma forma segura de estar no mundo porque a de bicho não bastava. Nunca bastou. Talvez se eu abrisse mão de mim e desse corpo. Talvez se eu fosse uma massa cinza e sem forma, sem apelo, sem jeito. Pensei em todas as meninas que foram vistas com olhos sujos de adulto como eu. Que talvez tenham se fechado dentro de si como eu. Aqui nessa solidão confortável onde não pareço nada. Aqui ninguém fala comigo. Ou olha pra mim.
Pensei na origem do medo e se um dia ele passa ou vai pra algum lugar que não em mim. Se um dia vou transitar em paz, ter segurança e direitos, poder escolher, poder parir sem medo, não ser tão vulnerável, me redescobrir feminina, sensual, pulsante, inteira… E gata - de bonita, não de bicho.
Hoje não indico nada. A sequência de notícias das últimas semanas foi forte demais, doeu demais, enjoou demais. Não tá fácil. Eu indico que se cuidem, se protejam, se fortaleçam enquanto mulheres, no psicológico, mas principalmente nas ações. Se cerquem de boas pessoas e façam escolhas saudáveis por vocês, até um dia possamos fazer por nós todas. Um beijo.
Esse foi um texto que mexeu muito comigo. Passei a semana inteira pensando nele até vir aqui comentar. E continuo sem palavras. Nascer mulher nesse mundo é um castigo, só posso torcer e lutar por um mundo melhor para as futuras. Pq hj? Tá muito difícil ter esperança.
Queria ter achado esse texto um saco, mas me identifiquei muito.